Central na metodologia concebida por Jean Monnet, um dos defensores da
integração europeia, o conceito de solidariedades
de fato implica gerar, nos fatos, encadeamentos sociais e produtivos
entre países que compartilham um espaço geográfico.
A finalidade desse conceito não é apenas econômica,
mas também política, na medida em que procura a irreversibilidade
da integração. As múltiplas redes sociais e produtivas
são parte dessa metodologia.
No Mercado Comum do Sul (Mercosul), os acordos setoriais previstos no
Tratado de Assunção tinham essa finalidade. Porém,
seu pleno desenvolvimento é um dos diversos assuntos pendentes
no bloco sul-americano, quase um quarto de século após a
sua criação.
Em alguns momentos, predomina a ideia de que o Mercosul é um fracasso
e que já não mais é relevante. Trata-se de uma visão
distorcida da realidade: desde o seu surgimento, o bloco apresentou resultados
positivos, que devem ser reconhecidos. Um dos principais é ressaltado
em nota técnica produzida pelo Instituto para a Integração
da América Latina e do Caribe (INTAL), do Banco Interamericano
de Desenvolvimento (BID)[1]. O documento analisa os impactos do Mercosul
sobre o comércio de produtos agropecuários e manufaturas
industriais e conclui que o bloco desempenhou papel relevante na modernização
desses setores. Certamente existem outros exemplos e talvez seja
esse o motivo pelo qual nenhum dos membros cogitou abandonar o Mercosul.
Desde osegundo semestre de 2015, a Presidência Pro Tempore do Mercosul
está a cargo do Paraguai. No começo de sua gestão,
o governo paraguaio identificou com clareza as prioridades com vistas
à recuperação da credibilidade do bloco. Algumas
dessas ações resultam de mandatos concretos aprovados pela
última Cúpula realizada em Brasília, em julho de
2015.
Uma das principais iniciativas nessa direção envolve a
busca de um plano de ação que permita eliminar diferentes
tipos de barreiras internas ao bloco as quais, segundo as regras
do Mercosul, não deveriam sequer existir no comércio entre
os países membros[2]. A questão havia sido incorporada ao
Comunicado Conjunto da reunião dos presidentes do Paraguai e Uruguai,
realizada em 25 de junho.
Outras prioridades referem-se às relações externas.
Uma delas consiste em avançar nas negociações com
a União Europeia (UE), dentro de uma estratégia mais ampla,
que busca assinar acordos comerciais com os grandes mercados do mundo.
No caso da China, por exemplo, o Mercosul nunca reagiu à proposta
de estudar a viabilidade de um acordo de livre comércio. Com os
Estados Unidos, o 4+1 caiu no esquecimento, e a ideia da Área
de Livre Comércio das Américas (ALCA) não foi substituída
por uma alternativa razoável.
No que toca às negociações com a UE, as Partes acordaram,
na reunião ministerial de junho de 2015, que as listas de ofertas
seriam trocadas no último trimestre deste ano. O Mercosul concluiu
a preparação da proposta, a qual será formalmente
apresentada à UE em reunião programada para novembro de
2015. Nessa oportunidade, caberá à UE apresentar sua própria
lista de ofertas, de modo que as negociações possam ser
retomadas.
É possível sustentar que as tratativas birregionais chegaram
a um momento crucial. O eventual descumprimento desse objetivo pode corroer
ainda mais a credibilidade de ambos os processos de integração.
É inútil insistir que a culpa é de um ou outro bloco,
ou deste ou daquele país. Trata-se de um caso típico de
esgotamento do denominado blame game, isto é, culpar
o outro por aquilo que não se alcançou nas negociações.
A outra prioridade em matéria de tratativas com terceiros países
envolve o avanço na concretização da estratégia
de convergência na diversidade, firmada entre o Mercosul e a Aliança
do Pacífico. Essa iniciativa pode ter a sua eficácia enriquecida
pela efetivação das propostas do primeiro-ministro da China,
Li Keqiang. Apresentadas durante a mais recente visita do oficial à
América do Sul, tais propostas preveem o financiamento de investimentos
para projetos de conectividade física dentro da região e
para o desenvolvimento de empreendimentos produtivos conjuntos.
Além disso, outras prioridades estão vinculadas à
criação de condições que incentivem o desenvolvimento
de cadeias produtivas entre empresas de países da região;
e ao tratamento de assimetrias que limitam a capacidade de países
como Paraguai e Uruguai lista que, agora, deve incluir também
a Bolívia para potencializar a seu favor as vantagens derivadas
de sua inserção no mercado do Mercosul.
Essas duas últimas iniciativas estão relacionadas, entre
outras questões, ao efeito da precariedade das regras pactuadas
sobre decisões de investimento produtivo ligadas, por sua
vez, a empreendimentos de alcance transnacional e ao aproveitamento do
mercado ampliado. Junto com insuficiências no plano da conectividade
física e da facilitação do comércio
um problema pertinente à América do Sul como um todo ,
a incerteza quanto ao cumprimento das regras é um dos fatores que
parecem explicar a ausência de grandes avanços na região
em matéria de desenvolvimento de cadeias transnacionais de produção.
O contraste com outras regiões, especialmente a Europa e o Sudeste
da Ásia, convida à reflexão e, mais do que isso,
à ação.
As iniciativas mencionadas acima são algumas das prioridades que
buscam contornar debilidades a fim de construir uma integração
de credibilidade entre os países do Mercosul. São fragilidades
porque, desde a criação do bloco, figuram entre as principais
medidas a serem adotadas e, nesse sentido, já deveriam ter apresentado
avanços muito mais significativos do que aqueles alcançados
até o presente. Por exemplo, as restrições ao comércio
recíproco não deveriam existir em nenhuma modalidade. Assim
era estabelecido pelo artigo 5º do Tratado de Assunção
e, sobretudo, pelos artigos 1º e 2º de seu Anexo I. Estas não
são normas programáticas: são normas jurídicas
concretas e exigíveis que, pelo menos no caso da Argentina, estão
teoricamente protegidas pela Constituição nacional, de acordo
com o princípio de primazia dos tratados no ordenamento legal interno.
Neste segundo semestre de 2015, portanto, a agenda do Mercosul é
bastante concreta. Além disso, é relevante e ambiciosa,
na medida em que exige um debate profundo orientado à ação.
Esse quadro merece a atenção de todos os protagonistas,
e não apenas de entidades governamentais. Assim, empresas, sindicatos,
academia e sociedade civil como um todo devem participar ativamente no
plano do diagnóstico e das propostas de ação. Aqueles
que integram ou que estão se preparando para integrar as instituições
parlamentares, em especial no Parlamento do Mercosul, também devem
ser parte ativa do debate.
Contudo, essa discussão não deve se limitar às prioridades
para o segundo semestre de 2015: é preciso que seja incorporada
à agenda sobre o futuro do Mercosul. Desde 1985, quando da assinatura
da Declaração de Foz do Iguaçu, os resultados foram
tão pobres quanto se assinala? Ou, pelo contrário, houve
muitos avanços em termos de governança e cooperação
regional e, por conseguinte, seria um erro grave abandonar um processo
como o Mercosul? Ademais, o prejuízo das empresas não seria
muito grande caso desaparecessem as preferências comerciais vigentes
no Mercosul, principalmente aquelas para bens industriais?
É difícil imaginar opções razoáveis
para o que hoje simboliza o Mercosul, uma ideia estratégica de
trabalho conjunto entre nações que compartilham um espaço
geográfico regional. Quando essa ideia for percebida em todas as
suas dimensões, isto é, na conexão entre o político,
o econômico, o social e o cultural, fica claro que o foco deve ser
colocado não tanto no plano existencial (Deve existir o Mercosul?
ou Por que trabalhar juntos?), mas sim no metodológico
(Como construir, trabalhando juntos e com a participação
dos cidadãos, um Mercosul que seja efetivo, eficaz e dotado de
legitimidade social?).
Nessa perspectiva, a entrada tanto da Bolívia como da Venezuela
deve ser percebida como uma forma de enriquecer e tornar mais complexa
e, talvez por isso, apaixonante a tarefa de construir o
Mercosul.
Sem prejuízo de outras, pelo menos três propostas podem
ser colocadas para facilitar o debate e a concertação de
interesses nacionais, requeridos no desenvolvimento da agenda sobre o
futuro progresso do Mercosul. A realização de tais propostas
é relativamente simples, caso exista uma vontade política
real e suficiente nos países membros.
Uma delas é identificar pontos de equilíbrio entre requerimentos
de previsibilidade e flexibilidade, necessários para reduzir o
efeito negativo da precariedade de regras sobre o comércio e os
investimentos regionais. Encarar demandas de flexibilidade nos compromissos
assumidos, por exemplo, em matéria de restrições
ao comércio, sem afetar uma pauta razoável de previsibilidade
(fundamental para decisões de investimento produtivo), pode ser
mais factível se forem introduzidas modalidades de válvulas
de escape, transitórias e sob o controle de instâncias técnicas.
A outra refere-se à complementação do sistema de
solução de controvérsias com a figura de um ouvidor,
que atue em defesa dos interesses daqueles que operam no Mercosul
como cidadãos, consumidores e empresas que investem e comercializam
nos países do bloco. A função do ouvidor seria detectar
regras e comportamentos que afetam interesses daqueles que não
são parte dos processos decisórios do Mercosul.
Por fim, a terceira proposta é alcançar uma efetiva transparência
de regras e processos de criação normativa, de modo a superar
a falta de instrumentos eficazes para informar os compromissos incorporados
ao acervo jurídico do Mercosul. Essa deficiência repercute
nos cidadãos dos países que compõem o bloco e faz-se
particularmente mais sentida nos setores com menor poder relativo
inclusive as micro-, pequenas e médias empresas. Isso pode ser
alcançado por meio das instituições parlamentares
e de páginas web oficiais de qualidade. Na busca por esse objetivo,
o Parlamento do Mercosul pode desempenhar um papel relevante.
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